Lênin e o fazer revolucionário – II

Lênin e o fazer revolucionário – II

Como afirmamos no texto anterior, os posicionamentos políticos de Lênin não podem ser hierarquizados em ordem de determinação, já que suas proposições se completam umas às outras, de maneira a formar um só corpo teórico-político: o leninismo. Abordadas no artigo anterior as propostas leninistas a respeito: (a) do lugar da teoria em sua articulação com a prática; (b) da luta contra o reformismo, visto este como antirrevolucionário; (c) da natureza do partido revolucionário; (d) da revolução como resultado de uma ação revolucionária, e não como um desenrolar espontâneo da história; e (e) da democracia como autêntica forma de organização do estado burguês – vistos tais temas –, vamos discutir agora outros itens da densa formulação de Lênin. E sempre ressaltando que não nos pretendemos conhecedores da obra leninista na profundidade necessária, mas que não mais que cumprimos uma tarefa no limite de nossa capacidade, dado que a esquerda, brasileira e mesmo mundial, “se esqueceu” de Lênin, compreendidas aqui organizações reformistas, trotskistas e gramscianas, que insistem em se dizerem marxistas e leninistas, mesmo que passando à distância de anos-luz de Marx e Lênin.

Comecemos, então, por uma questão por meio da qual a esquerda, mergulhada no espontaneísmo e no voluntarismo e, principalmente, no messianismo, acaba prestando um enorme serviço ao obscurantismo político: a denominação das correntes gerais da teoria e da prática revolucionárias. Assim é que tal esquerda lança no mesmo saco de gatos, como se tratasse de coisas da mesma natureza: marxismo, leninismo, maoísmo, trotskismo, kautskismo, luxemburguismo, guevarismo e quantos etcéteras se queira acrescentar.

Não, não se trata de coisas da mesma natureza. E fundamentalmente porque o marxismo e o leninismo possuem todo um conjunto de formulações no campo geral da teoria e da prática exigidas pelo fazer revolucionário em  todos países do mundo no tempo histórico denominado capitalismo. A essencialidade do marxismo e do leninismo está nas concepções filosóficas (materialismo dialético) e históricas (materialismo histórico), na prática revolucionária e no alcance histórico-geográfico de suas formulações.

É indiscutível o lugar absolutamente decisivo de Mao Tsé-Tung no enriquecimento do materialismo dialético, como igualmente decisivo foi seu papel na Revolução Chinesa. Mas o “pensamento de Mao”, reconheça-se, nada tem de qualitativamente diferente e/ou novo frente ao que formularam Marx e Lênin, este principalmente no que se refere ao partido revolucionário. O mesmo se pode dizer de outros heróis do proletariado mundial, como Stálin, Che Guevara, Fidel Castro, Ho Chi Min, Karl Liebnecht, Mariátegui, Rosa Luxemburgo e outros combatentes nesta mesma linha. Não deixa de ser correto alguém dizer-se maoísta nas discussões, correntes e propostas no interior do Partido Comunista Chinês, do mesmo modo que houve guevaristas e não guevaristas no PC Cubano na discussão dos anos 60 a respeito dos rumos da economia do país. Stálin foi nada menos que o líder e condutor da construção do socialismo soviético em meio a dificuldades inenarráveis. O que, no entanto, rigorosamente não autoriza a quem quer que seja igualá-lo a Marx/Engels e Lênin enquanto teoria-prática revolucionária. Rosa, sabemos, combateu de frente a concepção leninista de partido e dos meios da tomada de poder pelo proletariado, destacando-se que Rosa não foi reformista, mas sim uma combatente qualificada, de frente e de primeira hora, contra o reformismo.

Em outro campo se localizam o trotskismo e o gramscianismo. No campo do antimarxismo e do antileninismo. O ponto é que tais correntes possuem concepções tautológicas e mecanicistas das transformações históricas, acreditando, por exemplo, que o capitalismo encontraria seu fim pela sua própria dinâmica interna de reprodução. Trotsky fala em “crise final do capitalismo”, em seu ‘programa de transição’. Gramsci, que o proletariado e seus “intelectuais orgânicos”  devem buscar ganhar posições, principalmente no campo cultural, no interior da sociedade burguesa, no mesmo quadro histórico de um hipotético autodesmoronamento desta sociedade. Tudo isso é oposto e antagônico às proposições de Marx e Lênin. Assim, do ponto de vista de sua esfarrapada lógica interna, têm razão os que se dizem trotskistas e gramscianos.

Uma visão oposta da história e da revolução proletária vai inevitavelmente resultar em uma visão oposta a respeito da natureza dos agentes desta revolução. Assim, o leninismo é contra o tão sagrado aos trotskistas ‘direito de tendências’ no interior do partido revolucionário. Os trotskistas fazem questão de omitir que uma resolução estatutária de proibição foi redigida e feita aprovar por Lênin no X Congresso do Partido Bolchevique. Em Lênin, não devem existir nem intelectuais nem operários no partido revolucionário, mas sim militantes revolucionários, sem distinção social e qualificados política e teoricamente. Gramsci, como vimos, fala em “intelectuais orgânicos”, algo como uma casta diferenciada no interior do partido, cuja militância ele divide em hierarquias à moda militar.

Outra fraude comumente divulgada por trotskistas e reformistas é a afirmação de que a possibilidade de se construir o socialismo em um só país seria de autoria de Stálin. Não, não é. A teoria do socialismo em um só país é de autoria de Lênin, que a explicitou de forma clara em pelo menos dois textos: “A respeito da palavra de ordem dos Estados Unidos da Europa” e “O programa militar da revolução proletária”, o primeiro de 1915 e o segundo de 1916. Na realidade, Trotsky sempre foi contra a construção do socialismo na União Soviética, defendendo uma revolução mundial que só existia na sua cabeça, sabotando e conspirando contra todos os esforços, inclusive durante a II Guerra, desenvolvidos pela URSS.

Finalmente – e sem a mínima pretensão de haver sequer aprofundado todos os pontos essenciais –, é importante registrar a obra filosófica de Lênin “Materialismo e empiriocriticismo”, inclusive por sua até certo ponto inesperada atualidade. O empiriocriticismo foi (é?) uma corrente filosófica desenvolvida por dois alemães (Avenarius e Mach, muito em moda na Europa na primeira década do século passado. Para esta filosofia, as coisas não existem por si, mas só adquirem vida através de quem as observa. Como se vê, uma grotesca mistura entre ontologia e epistemologia – uma mistura canhestra, não uma articulação, sempre necessária, determinada pela matéria. Tal pressuposto acaba por afirmar que não existe objetividade, que não existe verdade. Tudo dependeria de quem vê. Tal absurdo remete muito bem – daí a atualidade da crítica de Lênin – para os dias de hoje, constituindo base geral da reacionária política de “identidades”, com seus trejeitos conservadores e ridículos, como o tal “lugar de fala”. O importante aqui é destacar que o período de brilho e luzes do empiriocriticismo foi denominado posteriormente por Lênin como tempo de pornografia e misticismo. Um tempo, portanto, semelhante aos atuais. Tempos de consumismo e hedonismo. Tempos de individualismo e reação.

Como a história provou, tais tempos não são eternos. Aquele tempo de instalação do imperialismo acabou resultando em um movimento histórico que deu espaço objetivo ao surgimento de uma crise do capitalismo no interior da qual o proletariado mundial e sua vanguarda fizeram emergir as revoluções russa e chinesa. Na mesma esteira histórica, os países do Leste Europeu, Vietnam e Cuba. Que não se iludam, pois, reacionários, reformistas e identitários. A revolução proletária continua na ordem do dia.

Venceremos!

 

Share