O significado do 8 de janeiro de 2023

O significado do 8 de janeiro de 2023

O fato já é bastante conhecido: no dia 8 de janeiro passado, milhares de pessoas fantasiadas de verde-amarelo ocuparam a Praça dos Três Poderes e, a partir daí, invadiram e depredaram as sedes nacionais dos poderes da República: o Congresso Nacional (Câmara e Senado), o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Palácio do Planalto. A fúria predadora verificada nas ações não encontra par na história do país, com o alto grau do ímpeto destruidor já dando ideia do que passava pela cabeça dos homens e mulheres empenhados na ação. Descerebrados? Portadores de algum tipo de raiva canina? Saqueadores medievais? Vândalos? Terroristas? Aparentemente isso, mas não exatamente isso. Os meios de comunicação burgueses e pequeno-burgueses – segmentos da esquerda aí incluídos – esforçam-se para ocultar o verdadeiro conteúdo político-ideológico que mobilizava aquelas cerca de quatro mil pessoas postas em ação na tarde brasiliense do último domingo. Então, quem era aquela gente? A quem e o que representam aqueles invasores dos (impropriamente) chamados poderes da república?

Em primeiro lugar, e apenas para limpar terreno: o verdadeiro, principal e mais forte poder da república brasileira, assim como da enorme maioria atual dos países do mundo, é a burguesia. Quem dita as ordens e fixa estratégias é a classe dos detentores do capital, banqueiros, industriais, grandes comerciantes e latifundiários, estes chamados eufemisticamente de membros do agronegócio. São muitas e variadas as artimanhas e recursos vocabulares usados pelos porta-vozes da burguesia para ocultar aquilo que realmente decide: as classes e as lutas de classe. No episódio em discussão, o recurso utilizado para encobrir a natureza político-ideológica foi denominar os invasores de “terroristas”. Foi realmente tragicômico ouvir e ver a indignação dos valentes repórteres, apresentadores e analistas da grande mídia encherem o peito para chamar os predadores de “terroristas!”. A favor desses serviçais do capital deve-se considerar o elementar fato de que são analfabetos. Isso, porém, se os explica, não os justifica. Como afirmou Marx, eles não sabem o que fazem…, mas fazem! Como se sabe, e se deveria saber, terrorismo é uma ação, necessariamente violenta e armada, contra um alvo indistinto e capaz de causar medo e pânico social. Ponto. É disso que se tratou? É isso o que queria aquela malta de lúmpens? Não, não foi. O objetivo foi – adiante-se – convocar as forças armadas nacionais para operar um golpe de estado, depor Lula e reinstalar Bolsonaro na presidência, com tudo o que isto implica. E o que são verdadeiramente os protagonistas dos atos de 8/1? Fascistas, eles e elas são fascistas. Ou se entendem os acontecimentos nesta dimensão ou não se entende nada. O PCB, por exemplo – exemplo do reformismo disfarçado que frutifica na esquerda brasileira – também chamou os invasores de terroristas, seguindo fielmente o vocabulário do governo Lula e da grande mídia.

O fato é que a corja que ocupou os prédios dos poderes oficiais em Brasília vem sendo cevada no caldo fascista, com profissionalismo e rigor, desde a campanha que elegeu Bolsonaro em 2018. Mesmo temendo repetir aqui o que o MM5 vem dizendo desde então, é preciso afirmar sempre que todo aparato estatal brasileiro, nos três níveis federativos e nos três administrativos e legislativos, está infestado de fascistas, que se penduram nos aparatos estatais como forma de organização. A democracia, como se sabe, é um terreno fértil para a proliferação do fascismo. Merecem destaque neste quadro o lugar e o papel das forças armadas. Responsabilidade do primeiro governo Lula, os remanescentes da ditadura – torturadores e assassinos incluídos – permaneceram intocados. Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique? Desses evidentemente não se poderia esperar nada, sempre foram, e nunca negaram, representantes da burguesia, dos exploradores em nome dos quais foi erguida e mantida a ditadura militar de 1964-85. Mas Lula, sim. Representando um partido que se dizia dos trabalhadores, tinha a obrigação, no mínimo moral, de sanear toda a sujeira criminosa herdada da ditadura. Mas não: até hoje é difícil, muito difícil, encontrar uma delegacia brasileira em que não se pratica tortura. E a própria formação do atual ministério Lula é prova da permanência do fascismo nos escaninhos do poder estatal. De lado a comédia de nomear auxiliares de Bolsonaro em departamentos do Ministério da Justiça, o que se poderia dizer, por exemplo, do ministro da Defesa José Múcio, que afirmou com inusitada desfaçatez possuir amigos e parentes entre os acampados na porta do QG do Exército em Brasília? E a senhora ministra do Turismo, digníssima esposa de um miliciano? E vai por aí. Isso sem dizer dos oportunistas de plantão, de calças ou de saias.

Fascismo estrutural

Mas o mais grave de tudo é que o Brasil é um país dotado de estruturas sócio-políticas, historicamente herdadas, que fazem dele um terreno fértil para a implantação de um estado fascista. Rigorosamente, a estrutura da formação social brasileira é fascista. Rigorosamente, o Brasil é um país escravagista, desde que aqui impera uma verdadeira escravidão assalariada, a escravidão branca, termo que remete a uma estrutura de salários abaixo de uma sobrevivência digna para aqueles que vivem de seus próprios braços e cérebros, uma herança da ditadura militar com sua estratégia de arrocho salarial como vetor do crescimento capitalista. E apenas, adiante-se, somente uma revolução proletária será capaz de quebrar tal estrutura. Nenhum dos governos pós-ditadura buscou aplicar uma estratégia socialdemocrata, tendo sido permitido aos dois primeiros governos Lula distribuir não mais que migalhas ao proletariado, dada uma situação internacional de inusual valorização das matérias-primas brasileiras (grãos, minérios etc.), uma situação de mercado de existência episódica, que não se repetirá e, se repetindo, não terá relevância na linha de quebrar a dimensão da escravidão branca. É disso que se trata. O Brasil, como país dependente, está inserido em um mercado mundial de trabalho no qual cabe ao proletariado apenas o mínimo dos mínimos necessários à sobrevivência cotidiana.

Mas o mais sólido alicerce do fascismo estrutural no Brasil é a existência de uma amplíssima classe média com um poder aquisitivo similar à de países da Europa e dos Estados Unidos e Canadá. O mais importante e indiscutível feito da ditadura 1964-85 foi a criação deste sofisticado mercado de consumo, dotado de luxuosíssimos shoppings centers, de um vasto sistema de comercialização a distância e de instrumentos de crédito que fazem do comprar e consumir uma filosofia de vida desta classe média. O nome desta filosofia é hedonismo, formulado na Grécia Antiga, em que, note-se, uma classe senhorial escravagista se somava a uma classe média intelectual e de pequenos comerciantes. Tudo isso montado sobre uma ampla massa de escravos, mantidos a ferro e fogo – literalmente – tanto na democrática Atenas quanto na fascistoide Esparta, para ficar nos exemplos mais conhecidos.

As Forças Armadas brasileiras constituem um oceano de reacionarismo, fascismo e ignorância. Se alguém tem alguma dúvida quanto a isso, basta observar o que vem acontecendo desde o dia 30 de outubro passado, isso para ficar apenas nas evidências imediatas. E esta é uma questão também estrutural, já que os segmentos médios e superiores destas forças foram e são objeto de benefícios tais que podem seguramente ser incluídas no campo da enorme classe média construída pela ditadura.

Some-se a repressão jurídica e política à ação dos portentosos aparatos ideológicos do estado e privados, e temos diante de nós uma enorme passividade do proletariado diante de tal situação, uma passividade consentida pela própria maioria da esquerda, perdida entre delírios e devaneios reformistas e eleitoreiros, identitaristas e gramscianos. Uma esquerda que reza diariamente no altar da democracia, às vezes travestindo-o de apelidos como “democracia operária”, “democracia socialista” ou – ainda mais enganoso – “poder popular”, como faz o PCB. O fato é que enquanto não se jogar a democracia, enfeitada ou não, na lata do lixo, não haverá a mais débil possibilidade de se destruir o fascismo estrutural que impera no país. O proletariado não precisa nem pode se valer do vocabulário da burguesia. Nossa proposta de poder só pode ser a ditadura do proletariado. Ou se assume esta linha ou não se é marxista, revolucionário. De outro lado, é preciso ter muitíssimo claro quando e como usar a palavra de ordem da ditadura do proletariado. Na conjuntura atual ela só pode se constituir em uma consigna de propaganda, em que, recomenda Lênin, são ditas muitas coisas para poucas pessoas. Como palavra de ordem de ação, apenas em momentos em que se coloca a derrubada do poder burguês, democrático ou não.

Mas a esquerda brasileira, assim como a maioria dos segmentos de esquerda em todo o mundo, encontra-se mergulhada no lodaçal pútrido da tal ‘agenda identitária’, uma estratégia espertamente urdida pelas usinas de ideias da burguesia – também chamadas universidades – com o objetivo de dividir o movimento do proletariado. Então, como ficou simbolicamente claro na subida da rampa do palácio por Lula, o proletariado enquanto tal é retirado de cena. Alimentado por Ongs criminosas, proliferam movimentos negros, indígenas, de mulheres, homossexuais etc. ostensivamente hostis à ideia de unificação do proletariado e manipulados por espertalhões. Combater de frente esta praga é dever inarredável de quem se considera revolucionário.

Boa parte da esquerda, a que não se deixou se iludir pelo caminho do institucionalismo burguês e que às vezes se pretende leninista, defende a necessidade de NÃO se tomarem os aparatos burgueses como instrumentos principais da luta dos trabalhadores. Propõe esta esquerda a necessidade de irmos às fábricas, instituições paraestatais, aos campos etc. Tudo correto. Até aí, o MM5 tem acordo. Mas: que fazer? Voltemos a Lênin. O trabalho revolucionário opera em três linhas fundamentais: organização, propaganda e agitação – a depender de quando se fala, para quem se fala, como se fala. E em qualquer dos três níveis, ensina Lênin, as nossas ações TÊM que ser parametrizadas por um programa revolucionário, uma estratégia revolucionária e uma tática revolucionária formulados pela vanguarda revolucionária. Ainda em Lênin, a luta sindical (por salários, condições de vida etc.) é essencialmente uma luta burguesa, mas que necessitamos desenvolvê-la, dado que tal luta é uma escola de militância revolucionária e que, mais importante, é no fogo dessas lutas concretas que poderemos desenvolver nossa agitação, nossa propaganda e nossa organização. Ou seja, as lutas parciais são meios – essenciais –, mas não mais que meios. Considerá-las um fim em si é cair nas arapucas do voluntarismo, do obreirismo, do economicismo, do reformismo. Sindicato não é partido revolucionário. Quem afirma o contrário não é nem nunca foi leninista.

Perspectivas

É no interior de todas essas condicionantes estruturais que temos que considerar as perspectivas das lutas de classe no governo Lula, inclusive levando em conta os acontecimentos do domingo passado. Em primeiro lugar, é preciso que os marxistas leninistas nos posicionemos firmemente contra as manifestações, passeatas etc. que, diante das invasões, ocupam as ruas em defesa da democracia. Insistimos em que a democracia é uma forma de organização do poder político da burguesia, tanto quanto o são o fascismo e a ditadura militar. Se formos às ruas, temos que fazê-lo com bandeiras próprias, proletárias, propondo um governo e um estado de trabalhadores, consigna sob a qual podemos e devemos defender a ditadura do proletariado. Alinhar-se à democracia é repetir erros que custaram muito sangue ao proletariado. Em 1945, o proletariado, comandado pelo PCB, serviu de bucha de canhão para a burguesia. Em 1985, o proletariado serviu de bucha de canhão para a burguesia. É preciso ter muito claro que naqueles momentos, assim como agora, a democracia interessava aos donos do capital, como temos apontado neste espaço e em nossa ‘live’ Conexão MM5 (www.mmarxista5.org). Mas pode não interessar em outros momentos, como em 1937 e 1964. Se a Biden e ao imperialismo em geral seria prejudicial a instalação de um estado fascista no Brasil agora, em razão da disputa política interna nos EUA e da necessidade de defesa geral da democracia – enquanto pretexto, sabemos – diante da guerra da Ucrânia, amanhã um golpe fascista poderá ser muito útil ao imperialismo. Como atualmente no Peru. Tudo vai depender da conjuntura, para cuja análise a esquerda brasileira cultiva um solene desprezo, preferindo se apegar a seus dogmas e preceitos messiânicos.

O que ocorreu no domingo 08/1 não foi um golpe de estado, sequer uma tentativa de golpe de estado. O que aconteceu foi uma mobilização fascista, que desembocou na ocupação dos palácios, mas sem apontar para a necessária efetivação da tomada do poder. O que os golpistas – que continuam golpistas – fizeram foi uma demonstração de força e um chamado às Forças Armadas (FFAA). Sequer emergiu do movimento uma liderança, sequer uma pretensa liderança. Pelo visto, o fascismo brasileiro poderá até procurar outro líder, e tanto é assim que Bolsonaro já anuncia sua volta ao Brasil, na certeza de que aqui será tratado com cortesia.

Bolsonaro sabe que, se não cometer um grande erro, sempre poderá contar com as FFAA, com a classe média consumista, com suas milícias e com as igrejas neopentecostais, além da adesão de variados níveis de lúmpens. E é com essa realidade que temos que conviver. Lula tem a partir de agora uma espada sobre o pescoço. Uma espada que poderá baixar de vez na proporção em que a roda da conjuntura rodar contra ele, em que as migalhas que distribui ao proletariado se mostrarem insuficientes para conter a onda fascista e em que a progressiva voracidade de lucros da burguesia não puder ser saciada em razão mesmo da crise capitalista mundial.

À esquerda, cabe resistir, mas resistir enquanto revolucionária, acumulando forças no seio das lutas concretas do proletariado na linha da construção do partido leninista revolucionário, organizando estas lutas, estimulando-as no extremo limite das possibilidades conjunturais. Por último, mas não menos importante: é preciso que cada organização de esquerda que busca a concretização da tarefa da construção de um partido revolucionário no país abra mão definitivamente da estúpida convicção messiânica de que é ou poderá ser o núcleo deste partido.

Venceremos!

 

Share