A vitória de Lula e o bolsonarismo

A vitória de Lula e o bolsonarismo

O principal e decisivo fator a ser identificado na vitória do candidato petista no último dia 30/10 é que estamos diante de um fato histórico, ou seja, um evento político capaz de condicionar estruturalmente o conteúdo geral das lutas políticas que lhe são posteriores. A vitória de Lula – no interior de uma disputa burguesa, é claro – instala a luta de classes no país em um patamar qualitativo de agudização superior em relação à correlação de forças entre duas das formas de organização política da dominação da burguesia: democracia e fascismo. A outra forma de estado da dominação burguesa, como se sabe, é a ditadura militar. Logo após o anúncio oficial do resultado, emergiu com todo ímpeto possível o projeto fascista. Que ninguém se iluda. Não estivemos apenas diante da deflagração de mais um dos velhos conhecidos golpes militares que povoam a história recente da América Latina. O que as forças enraivecidas da extrema direita tentaram foi mesmo um golpe fascista. A diferença fundamental entre fascismo e ditadura militar está em que o fascismo possui amplas e sólidas bases de massa, o que não acontece com as ditaduras militares. Pode-se também dizer que o fascismo brota de baixo para cima, das mais apodrecidas raízes político-ideológicas das sociedades capitalistas, sendo os golpes militares movimentos armados de cima para baixo, dos quartéis para as instituições políticas e sociais, com a construção de coesão ideológica e base social num processo posterior ao ato golpista em si.

As mobilizações golpistas do bolsonarismo que sobrevieram de imediato ao anúncio da vitória de Lula agora são cinzas. A primeira arremetida do fascismo fracassou. Mas o fato, tão significativo quanto claro, é que há brasas sob essas cinzas. A demonstrá-lo, a continuidade das manifestações em frente aos quartéis clamando pelo golpe e, até agora (11/11/22), a permanência, no pátio do principal quartel do Exército em Brasília, de 110 daquelas centenas de caminhões que bloquearam a quase totalidade das estradas brasileiras logo após a derrota eleitoral de Bolsonaro. A grande burguesia instalada no Brasil, em todos os seus segmentos (financeiro, industrial, de serviços e mídia), apoiou ostensivamente a candidatura Lula, os patrões imperialistas disseram não ao golpe fascista (Biden foi o primeiro a cumprimentar Lula pela vitória) e as Forças Armadas brasileiras foram proibidas pelo patrão do Norte de desfechar o golpe. Resultado: o primeiro ataque fascista ao estado democrático nesta segunda era Lula resultou em um tiro n’água.

A democracia ganhou a batalha eleitoral, mas não ganhou a guerra. De lado a euforia pequeno-burguesa tão comum em conjunturas como a que vivemos atualmente, o fato é que o fascismo personificado em Jair Bolsonaro fincou fundas raízes institucionais, políticas, organizatórias e ideológicas na formação social brasileira. Não, ele não operou nenhum milagre, mas soube aproveitar com pleno êxito um potencial estrutural do fascismo no país. Vejamos.

  1. a) Como observam os poucos historiadores sérios do país, o Brasil não tem história, ou seja, os eventos políticos que o criaram como país independente (território, povo e estado) resultaram de arranjos e rearranjos costurados por cima entre facções das classes dominantes, sem a participação do proletariado na defesa de objetivos próprios e embutidos, mesmo que secundariamente, na construção da nacionalidade. As lutas próprias e específicas do proletariado desde o período colonial ou foram folclorizadas ou lançadas ao lodo do esquecimento por operações arquitetadas, conduzidas e permanentemente mantidas pelos aparatos ideológicos, educacionais e militares das classes dominantes. De seu lado, a esquerda, desde que é esquerda, jamais soube se transformar em força real de quantidade e qualidade verdadeiramente proletária, já que, em sua imensa maioria, jamais soube sequer se libertar das amarras da democracia, o que fez e faz dela não mais que um vagão da locomotiva burguesa, um exército de reserva da própria burguesia sempre pronto a cerrar fileiras com os exploradores exatamente quando o estado burguês da ocasião dá mostras de aguda fragilização. Foi o que fez a força majoritária da esquerda, o PCB, em 1964, preferindo o caminho de conciliação de classe através da estratégia democrática, jogando assim Marx e Lênin na lata do lixo. Mais perto: foi o que fez praticamente toda a esquerda quando, ao final dos anos 70/início dos anos 80 do século passado, a ditadura militar dava seus suspiros finais. E é o que fez e está fazendo tal esquerda agora. Militância na rua para combater a canalha fascistoide? Revolução? Não, nada disso. E a barca Brasil acabou dando novamente na praia da democracia.
  2. b) A ditadura 1964/85 pode exibir entre seus principais feitos a criação no país de um enorme mercado consumidor constituído pelo cruel processo de concentração de renda, que, em resumo, produziu uma classe média tão hedonista quanto de potencial consumidor que a iguala a populações de países inteiros da Europa em quantidade e qualidade, e de outro lado, a miserabilização de amplos segmentos do proletariado. O Brasil passou a ser um dos países com o maior número de favelas no mundo – troféu que ongueiros e identitários exibem com alegria e orgulho, já que tal situação lhes permite o desfrute das generosas migalhas que escapam das mesas da burguesia e desta classe média consumista. Quem tem boa memória certamente se lembra do lema “fazer o bolo para depois distribuir”, lema de toda a política econômica da ditadura 64/85, anunciado sempre de boca cheia pelo então ministro-mor Delfim Neto, que escapou ileso de todos os crimes que cometeu, chegando mesmo a figurar em certo tempo como oráculo dos petistas em economia. Registre-se: esta enorme classe média é celeiro estrutural de misticismo e pornografia, como diria Lênin. E de consumismo, hedonismo e fascismo – acrescentamos nós.
  3. c) A questão religiosa. Some-se o advento do neoliberalismo, com todas as suas faces econômicas e ideológicas, com o acima referido processo de concentração de renda no país, e temos o terreno material para a pesada onda de misticismo em que se encontra imerso o proletariado brasileiro. À derrota imposta pelo imperialismo à União Soviética (houve também causas internas que contribuíram pra tal derrota, é indiscutível) some-se a intensíssima campanha ideológico-religiosa implementada pelo Vaticano na pessoa do papa João Paulo II, documentadamente um agente da CIA, que cumpriu religiosamente a tarefa de destruição, na linha de terra arrasada, da Teologia da Libertação, corrente eclesiástica que trabalhava desde os tempos do papa João XXIII em linha com os interesses imediatos do proletariado. Não por acaso, João Paulo II, líder do catolicismo medieval polonês, é um dos acusados pelo assassinato do seu predecessor João Paulo I, adepto da Teologia da Libertação. Vem daí o evangelismo financeiro fascistoide imperante no país.

É na perversa mistura de tais fatores que encontramos a possibilidade estrutural do fascismo no Brasil.

O golpe

Que ninguém se engane. O que se tentou no Brasil desde as primeiras horas do anúncio do resultado da eleição, e durante praticamente os cinco dias que se seguiram, foi um golpe de estado tipicamente fascista, protagonizado por amplas massas de classe média e desempregados lumpenizados. E as conhecidas milícias bolsonaristas, é claro. Além dos mais de oitocentos bloqueios de estradas por todo o país, assistiu-se igualmente no país inteiro a manifestações em frente a quartéis, principalmente do Exército, quando multidões contadas a dezenas de milhares de pessoas entoavam chamamentos de “vem pra rua”, pedindo o golpe. Todos os dois eventos sob o guarda-chuva de lemas “Deus, Pátria e Família” e “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, de claríssima inspiração fascista, além de toda uma fraseologia pornográfica, igualmente a gosto de fascistas. Que se registre, portanto: massas partiram para a luta pelo fascismo.

O silêncio do chefe Bolsonaro nas horas e dias seguintes à derrota pode ser visto como um brado retumbante de alto significado tático. Dado o sinal de largada, faltava apenas o apoio, sempre decisivo, das Forças Armadas. A pergunta é: por quê Bolsonaro não obteve o apoio das Forças Armadas, ele que trabalhou arduamente por tal objetivo durante todos os dias dos seus quatro anos de mandato? Resposta: o imperialismo não quis e não quer um golpe de direita no Brasil agora.

Em primeiro lugar porque o golpe seria ostensivamente prejudicial à mobilização de todo o império em favor do governo ucraniano, já que toda a estratégia mentirosa da Otan se baseia em que se trataria da defesa da democracia. E apoiar Bolsonaro e defender a democracia configuraria um paradoxo insustentável. Em segundo lugar, igualmente importante, o partido do chefão Biden trava uma dura batalha eleitoral nos EUA com o Partido Republicano, de Trump, tendo já perdido a maioria na câmara de representantes daquele país. O Senado ainda está em jogo. Ora, apoiar Bolsonaro e criticar Trump constituiria um paradoxo igualmente absurdo, que somente enfraqueceria a campanha dos democratas norte-americanos. Não por acaso, insista-se, o primeiro telefonema de parabéns a Lula foi feito por Joe Biden, seguido por toda a canalhada que capitaneia o imperialismo mundo afora.

Mas todos os fatos e fatores até agora alinhados neste texto não excluem, fiquemos certos, a possibilidade de um golpe fascista no médio e no longo prazos – e até mesmo mais em prazo curto. Não nos esqueçamos do alerta de Marx no “O 18 Brumário”: militares se vendem até mesmo por uma garrafa de cachaça e um quilo de linguiça. Não se pode descartar a incidência de fatores eventuais em qualquer quadro político conjuntural. Qualquer análise que se pretenda séria tem obrigatoriamente que mensurar não mais que potencialidades de desenvolvimento das lutas de classes. O contrário disso é mecanicismo. No caso concreto, a possibilidade maior é de que uma nova iniciativa de golpe fascista não ocorra em um curto prazo, não se podendo contudo descartar que a mesma venha a ocorrer. Sabe-se, por exemplo, que em março de 1964 o então comandante do II Exército, general Amaury Kruel, só aderiu ao golpe frente ao fortíssimo argumento de uma maleta contendo US 100 mil. Sabemos que a classe média, inclusive médios empresários, ainda não desistiram de um golpe fascista agora, já que continuam financiando as manifestações golpistas.

Se ao imperialismo não interessa um golpe fascista no Brasil no momento, este momento não pode ser estendido no tempo de forma abstrata. Basta que se altere o quadro geral da conjuntura mundial e latino-americana para que a postura dos donos do capital igualmente se altere. Domingo passado (6/11), uma vasta manifestação da extrema direita peruana cobriu as ruas daquele país buscando a derrubada do presidente Pedro Castillo – de resto, um demagogo de baixa categoria. Recado da Casa Branca, através de seu porta-voz oficial: o povo peruano tem todo o direito democrático de ir às ruas manifestar suas reivindicações. Recado: o que não é bom para o Brasil pode ser bom para o Peru. Venezuela: apesar da lua de mel do presidente Nicolás Maduro com Biden, basta que a pressão do movimento operário do país, atualmente em ascensão, venha a forçar o presidente do país a tomar medidas contrárias aos interesses do imperialismo para que tal lua de mel seja interrompida. Registre-se que o capitalismo vive um momento de aprofundamento de uma grave crise cíclica, que se expressa principalmente através de dois fatores nas diferentes formações sociais que compõem mundialmente o sistema: inflação e queda dos produtos internos brutos, configurada, pois, uma situação de instabilidade política e diplomática no sistema como um todo e em cada uma dessas formações sociais.

Mais concretamente, Lula enfrentará um dilema de difícil equacionamento na área econômica: precisa distribuir suas tradicionalíssimas migalhas ao proletariado no curtíssimo prazo e, de outro lado, precisa instalar também no curtíssimo prazo uma política econômica que garanta progressivamente maiores e melhores lucros à burguesia. Houve recursos financeiros nos seus mandatos anteriores suficientes para Lula se manter nesta corda bamba. Com a crise mundial, tais recursos também progressivamente se escassearão. E há a questão diretamente política, igualmente grave e talvez mais grave. Com as raízes do bolsonarismo solidamente fincadas, o mandato atual de Lula terá que se defrontar cotidianamente, a cada hora, com multiplicadas tentativas de apeá-lo do poder. E por isso mesmo o governo terá que desfechar desde já um combate duro às bases bolsonaristas-fascistas, o que inevitavelmente produzirá um permanente desgaste de governabilidade, por onde seguramente penetrarão as arremetidas da extrema direita.

O que fazer, então?

Visto que a democracia – mesmo com seus já tradicionais penduricalhos e enfeites pequeno-burgueses do tipo “proletária”, “popular”, “direta” etc. – é comprovadamente incapaz de se constituir em alternativa tática e/ou estratégica à dominação política burguesa, visto isso, só resta à esquerda que se pretende marxista e não quer desonrar este nome partir para a construção de uma consciência revolucionária no seio do proletariado – locais de trabalho e moradia e sindicatos, principalmente – através da intervenção concreta em suas lutas concretas: greves, paralisações, bloqueios, reivindicações locais por moradia, escola, hospitais etc. É tão necessário quanto inadiável e urgente partir para a criação hoje, no seio do proletariado, de núcleos da utopia revolucionária, que tenham na revolução socialista seu sonho maior.

Por favor, não chamem portanto o Movimento Marxista 5 de Maio-MM5 para trabalhar direta ou indiretamente na linha do fortalecimento da democracia ou de qualquer forma de organização do poder político burguês. E aqui declaramos nosso repúdio político ao reformismo e a qualquer tipo de linha política direta ou indiretamente a ele associado. Todo o contrário, convocamos aqui todos os grupos e organizações dispostas a lançar na lata do lixo as ilusões políticas burguesas e pequeno-burguesas a nos juntarmos na linha da criação de uma força voltada para a construção de um partido revolucionário do proletariado  brasileiro.

Venceremos!

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